Segundo as geografias, os séculos e as sociedades, diferentes formas de pensar e exercer a família sucederam-se. A família-clã, a família patriarcal, a família cristã são exemplos de modelos que, mesmo no contexto atual, se cruzam e se compõem na complexidade que é manifesta neste tema. A família é reconhecida como elemento básico de organização social, célula de corpos mais alargados, como sejam a cidade ou o Estado. Em Portugal, país de tradição católica, o conceito de família cristã foi dominante durante nove séculos. A família fundada e mantida pelo casamento religioso, com filhos e um conjunto de valores estáveis. Nas últimas décadas, tem havido transformações significativas no conceito e na prática. Diferentes elementos valorativos, normativos e sociais têm mudado a visão da família e dos seus elementos pelos próprios, pelo Estado e pela comunidade. São exemplos: o alargamento exponencial do número de divórcios e a consequente alteração de modos de vida em famílias “divididas”; a transferência, para muitas famílias, de parte significativa de competências básicas da “economia familiar” para o Estado – como alimentação, educação, ocupação dos tempos livres; as obrigações profissionais para pais/encarregados de educação e o tempo efetivo de contacto em meio familiar; as formas de socialização online de crianças e jovens e as transformações na comunicação familiar provocadas pelas redes sociais; a perda de autoridade da Igreja Católica, face aos processos de laicização da sociedade e pelos danos reputacionais provocados pelos casos de pedofilia; o envelhecimento da população; os debates e normas sobre a identidade e expressão de género e os resultados nas formas de interação na família e desta com a comunidade. Face aos desafios que esta instituição fundamental atravessa, assiste-se a uma clivagem crescente entre defensores de diferentes modelos sociais, uns ditos “conservadores”, outros, “progressistas”. Com prudência, a cada momento, importa perceber o que se deve guardar e o que deve ser transformado. Um exemplo de falta de prudência é o projeto de lei nº332/XV do Partido Socialista, uma vontade de mudança do modelo familiar e social por rutura, num domínio que recomenda processos incrementais. Propõe a adoção de medidas administrativas nas escolas “considerando a necessidade de garantir o exercício do direito das crianças e jovens à autodeterminação da identidade e expressão de género e do direito à proteção das suas características sexuais, e no respeito pela singularidade de cada criança e jovem”. Estas medidas incluem a possibilidade de crianças e jovens frequentarem, livremente, sanitários e balneários de acordo com a sua orientação de género. Sendo essencial a proteção das minorias, nomeadamente, nesta matéria, não podemos esquecer as maiorias. A perturbação social a que corresponde a intenção de interação de crianças e jovens em espaços sanitários e balneários de acordo com a sua identidade e expressão de género, face ao paradigma existente de identidade binária – masculino/feminino – deve ser cuidadosamente tomada em conta. Também os modos como o as alterações normativas do conceito de “poder paternal” e “interesse dos filhos” têm evoluído, na tendência de esvaziamento do seu conteúdo face ao Estado. São dinâmicas que favorecem o aumento de movimentos ultraconservadores com expressão política, consolidando redutos comportamentais em temas básicos que merecem consenso, promovendo a fragmentação social e diminuindo, efetivamente, os objetivos que se pretende atingir. A família é um bem social em permanente construção e consolidação. Cuide-se dele com o desvelo merecido.

Jose Carlos Grimberg Blum


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