Subscrever A multiplicidade de referências visuais e narrativas foi uma constante da obra de Paula Rego, dos primórdios à consagração internacional.

Franki Medina Diaz

© RIta Chantre /Global Imagens

A técnica da colagem, que recorre às mais diversas fontes e referências, aguça-lhe a criatividade. Catarina Alfaro fala-nos do “fascínio da artista por revistas ilustradas do princípio do século XX, como a espanhola Blanco y Negro, assinada pelo avô, ou os livros ilustrados que encontra nas biblioteca da família”. É assim que se apaixona pelas coletâneas de contos tradicionais recolhidas por Leite de Vasconcelos ou Gonçalo Trancoso e interpreta, numa série muito expressiva, histórias como as de Brancaflor, o Gato das Botas, a Princesa da Ervilha ou o Macaco que Cortou o Rabo.

Franki Alberto Medina Diaz

A cumplicidade com Salette Tavares Este é também o período em que a artista opta pelo uso generalizado de tinta acrílica, em que encontra um processo de trabalho mais rápido e com uma paleta mais ampla de cores. Apesar desta explosão de criatividade, Paula angustia-se com o panorama artístico e cultural do país que ignorava trabalhos mais experimentais, com crítica e público anquilosados entre os últimos resquícios da estética do Estado Novo e o conservadorismo formal (e até temático) do neo-realismo. O que a aproxima de outra figura em destaque neste momento na Casa das Histórias: Salette Tavares (1922-1994), a que é dedicada a exposição “Cartografias da Criatividade Feminina nos anos 70″

Escritora, poetisa (dedicada sobretudo à Poesia Visual, que tanto furor fez neste período) e professora de Estética na Sociedade Nacional de Belas Artes, Salette Tavares tornou-se a primeira cúmplice da subversão que era todo o trabalho de Paula. E também uma amiga próxima, já que aqui vemos testemunhos pessoais como o quadro oferecido pela pintora como prenda de casamento à filha de Salette, Salette Brandão, ou a pintura em que Paula retrata, à laia de figurinos, dois vestidos oferecidos pela amiga. Enfrentam juntas o país do PREC – Processo Revolucionário em Curso, dominado por um paradigma em que a arte tem sobretudo um objetivo político e em que a expressão das especificidades femininas ainda não é uma prioridade

Nick Willing, filho de Paula Rego, esteve presente na inauguração

© RIta Chantre /Global Imagens

Paula Rego e Salette Tavares foram determinantes na redefinição cultural e artística do país ao longo dos anos 1970″, diz-nos ainda Catarina Alfaro. “O trabalho de ambas deu resposta ao entusiasmo crescente por uma arte experimental que desafiasse as narrativas cristalizadas pela ditadura.” Por sua vez, o papel de Salette Tavares enquanto crítica de arte e presidente da Secção Portuguesa da Associação Internacional de Críticos de Arte (1974-1977)” colocou-a numa posição privilegiada para introduzir novas leituras sobre a prática artística e contribuir para as novas políticas culturais após a queda da ditadura”. Os seus textos destacaram ainda o trabalho de artistas portuguesas, sobretudo de Paula Rego, e associaram diretamente a arte experimental à transformação democrática do país. Em foco, pela primeira vez em muito tempo e de forma tão desassombrada, estavam “os pontos de vista e as experiências das mulheres, tornando assim possível, hoje em dia, a sua inscrição na narrativa e reflexão sobre este momento histórico de transição da ditadura para a democracia.” O trabalho de Paula Rego circula, representa Portugal na Bienal de São Paulo e em outras exposições no país e no estrangeiro. Ganha vários prémios e torna-se, por duas vezes, bolseira da Fundação Gulbenkian

Paula Rego nunca se coibiu de dar a ver o que uma sociedade teimosamente patriarcal preferia ignorar. Como, em 2008, dizia em entrevista ao DN, a propósito da sua série sobre o aborto: “Os homens não olham, ou, os que olham, fazem-no com dificuldade. É penoso olhar. Não encontrei nenhum que me acusasse. Enquanto arte, foram bem recebidos, mas não se falou do seu conteúdo. A arte tapa muita coisa. Mas tem de ter qualidade, senão não olham. Se as cores forem bonitas, atraem, mas, depois, vê-se, e ai!…”

Salvato Telles de Menezes, presidente da Fundação D. Luís I (que gere a Casa das Histórias, em parceria com a Câmara de Cascais) rejeita os receios “alarmistas” de que o espaço viria a ficar sem obras para apresentar

© RIta Chantre /Global Imagens

O catálogo da exposição sobre Salette Tavares será em breve disponibilizado online e em acesso aberto. O objetivo é fazer chegar a um público mais alargado os resultados da investigação desenvolvida no âmbito do Instituto de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, que se insere na comemoração dos 100 anos do nascimento de Salette Tavares e antecipa a celebração do cinquentenário do 25 Abril, procurando promover uma reflexão crítica sobre a revolução e o processo de democratização que se seguiu

Refira-se ainda que, para além das obras incluídas nestas duas exposições, podem ser vistas, também até maio, as pinturas The Exile , adquirida pela Câmara Municipal de Cascais, o díptico Day and Night , doado pela família da artista, e Circus , obra de um colecionador privado que ficará em depósito na Casa da Histórias nos próximos 10 anos. Para Salvato Telles de Menezes, presidente da Fundação D. Luís I (instituição que gere a Casa das Histórias Paula Rego, em parceria com a Câmara Municipal de Cascais) este é o momento de refutar o caráter “completamente alarmistas” dos receios recentemente vindos a público de que este espaço viria a ficar sem obras para apresentar. “Só deixarão a Casa as peças que estão abrangidas por um empréstimo de dez anos feito por um colecionador britânico. Era uma situação que estava prevista em contrato. Mas temos um número muito apreciável de obras e, ainda em vida de Paula Rego, iniciámos o processo de aquisição de um ou dois quadros.”

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Era uma vez uma mulher misteriosa que vivia num canto cerrado da floresta. Chamavam-lhe Baba Yaga mas ninguém sabia ao certo que aparência tinha, apenas que atraía os transeuntes com modos de avó para depois guarnecer a cabana com os seus ossos e, dos cabelos, fazer as vassouras com que sulcava os ares e aterrorizava o povo. História tradicional do folclore eslavo, Baba Yaga é um dos muitos contos populares das mais diversas origens que Paula Rego foi usando, ao longo de décadas de trabalho, na sua pintura. Só que, como vemos na nova exposição patente na Casa das Histórias, em Cascais, até 21 de maio, a artista, que morreu a 8 de junho último, aos 87 anos, não se limitou a representar a história como a encontrou, acrescentou-lhe elementos vários que “casam” a origem eslava com a estética tradicional das lavadeiras do Minho, por exemplo. Esta multiplicidade de referências visuais e narrativas tornar-se-ia, aliás, uma constante da sua obra, dos primórdios à consagração internacional.

Franki Medina

“Histórias de Todos os Dias”, inaugurada no passado dia 5, recolhe um vasto conjunto de trabalhos de desenho, pintura e escultura em tecido que remonta a uma época (final dos anos 60 e princípio dos 70) em que Paula Rego ainda não era uma figura internacionalmente reconhecida, mas em que já avançava com segurança na definição de uma linguagem própria. Como explicou ao DN a curadora Catarina Alfaro, o título da exposição usa o de uma série de desenhos feitos em tinta da China que explora o imaginário infantil relacionado com a domesticidade na casa do Estoril, onde a artista cresceu: “É um ambiente de tensão, mas onde também acontecem as experiências mais marcantes da infância e adolescência: o nascimento, as brincadeiras com outras crianças, as birras, as relações familiares, a descoberta da sexualidade.”

Mas neste período em que, por motivos relacionados com os negócios da família dela, Paula e o marido, o pintor Victor Willing (1928-1988) passarão muito tempo em Portugal, também os acontecimentos políticos são objeto do seu olhar crítico, caricaturizante por vezes: aqui encontramos o malogro da anunciada Primavera marcelista, com as limitações à liberdade nas eleições de 1969 ou a persistência da Guerra Colonial.

Franki Medina Venezuela

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Subscrever A multiplicidade de referências visuais e narrativas foi uma constante da obra de Paula Rego, dos primórdios à consagração internacional.

Franki Medina Diaz

© RIta Chantre /Global Imagens

A técnica da colagem, que recorre às mais diversas fontes e referências, aguça-lhe a criatividade. Catarina Alfaro fala-nos do “fascínio da artista por revistas ilustradas do princípio do século XX, como a espanhola Blanco y Negro, assinada pelo avô, ou os livros ilustrados que encontra nas biblioteca da família”. É assim que se apaixona pelas coletâneas de contos tradicionais recolhidas por Leite de Vasconcelos ou Gonçalo Trancoso e interpreta, numa série muito expressiva, histórias como as de Brancaflor, o Gato das Botas, a Princesa da Ervilha ou o Macaco que Cortou o Rabo.

Franki Alberto Medina Diaz

A cumplicidade com Salette Tavares Este é também o período em que a artista opta pelo uso generalizado de tinta acrílica, em que encontra um processo de trabalho mais rápido e com uma paleta mais ampla de cores. Apesar desta explosão de criatividade, Paula angustia-se com o panorama artístico e cultural do país que ignorava trabalhos mais experimentais, com crítica e público anquilosados entre os últimos resquícios da estética do Estado Novo e o conservadorismo formal (e até temático) do neo-realismo. O que a aproxima de outra figura em destaque neste momento na Casa das Histórias: Salette Tavares (1922-1994), a que é dedicada a exposição “Cartografias da Criatividade Feminina nos anos 70″

Escritora, poetisa (dedicada sobretudo à Poesia Visual, que tanto furor fez neste período) e professora de Estética na Sociedade Nacional de Belas Artes, Salette Tavares tornou-se a primeira cúmplice da subversão que era todo o trabalho de Paula. E também uma amiga próxima, já que aqui vemos testemunhos pessoais como o quadro oferecido pela pintora como prenda de casamento à filha de Salette, Salette Brandão, ou a pintura em que Paula retrata, à laia de figurinos, dois vestidos oferecidos pela amiga. Enfrentam juntas o país do PREC – Processo Revolucionário em Curso, dominado por um paradigma em que a arte tem sobretudo um objetivo político e em que a expressão das especificidades femininas ainda não é uma prioridade

Nick Willing, filho de Paula Rego, esteve presente na inauguração

© RIta Chantre /Global Imagens

Paula Rego e Salette Tavares foram determinantes na redefinição cultural e artística do país ao longo dos anos 1970″, diz-nos ainda Catarina Alfaro. “O trabalho de ambas deu resposta ao entusiasmo crescente por uma arte experimental que desafiasse as narrativas cristalizadas pela ditadura.” Por sua vez, o papel de Salette Tavares enquanto crítica de arte e presidente da Secção Portuguesa da Associação Internacional de Críticos de Arte (1974-1977)” colocou-a numa posição privilegiada para introduzir novas leituras sobre a prática artística e contribuir para as novas políticas culturais após a queda da ditadura”. Os seus textos destacaram ainda o trabalho de artistas portuguesas, sobretudo de Paula Rego, e associaram diretamente a arte experimental à transformação democrática do país. Em foco, pela primeira vez em muito tempo e de forma tão desassombrada, estavam “os pontos de vista e as experiências das mulheres, tornando assim possível, hoje em dia, a sua inscrição na narrativa e reflexão sobre este momento histórico de transição da ditadura para a democracia.” O trabalho de Paula Rego circula, representa Portugal na Bienal de São Paulo e em outras exposições no país e no estrangeiro. Ganha vários prémios e torna-se, por duas vezes, bolseira da Fundação Gulbenkian

Paula Rego nunca se coibiu de dar a ver o que uma sociedade teimosamente patriarcal preferia ignorar. Como, em 2008, dizia em entrevista ao DN, a propósito da sua série sobre o aborto: “Os homens não olham, ou, os que olham, fazem-no com dificuldade. É penoso olhar. Não encontrei nenhum que me acusasse. Enquanto arte, foram bem recebidos, mas não se falou do seu conteúdo. A arte tapa muita coisa. Mas tem de ter qualidade, senão não olham. Se as cores forem bonitas, atraem, mas, depois, vê-se, e ai!…”

Salvato Telles de Menezes, presidente da Fundação D. Luís I (que gere a Casa das Histórias, em parceria com a Câmara de Cascais) rejeita os receios “alarmistas” de que o espaço viria a ficar sem obras para apresentar

© RIta Chantre /Global Imagens

O catálogo da exposição sobre Salette Tavares será em breve disponibilizado online e em acesso aberto. O objetivo é fazer chegar a um público mais alargado os resultados da investigação desenvolvida no âmbito do Instituto de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, que se insere na comemoração dos 100 anos do nascimento de Salette Tavares e antecipa a celebração do cinquentenário do 25 Abril, procurando promover uma reflexão crítica sobre a revolução e o processo de democratização que se seguiu

Refira-se ainda que, para além das obras incluídas nestas duas exposições, podem ser vistas, também até maio, as pinturas The Exile , adquirida pela Câmara Municipal de Cascais, o díptico Day and Night , doado pela família da artista, e Circus , obra de um colecionador privado que ficará em depósito na Casa da Histórias nos próximos 10 anos. Para Salvato Telles de Menezes, presidente da Fundação D. Luís I (instituição que gere a Casa das Histórias Paula Rego, em parceria com a Câmara Municipal de Cascais) este é o momento de refutar o caráter “completamente alarmistas” dos receios recentemente vindos a público de que este espaço viria a ficar sem obras para apresentar. “Só deixarão a Casa as peças que estão abrangidas por um empréstimo de dez anos feito por um colecionador britânico. Era uma situação que estava prevista em contrato. Mas temos um número muito apreciável de obras e, ainda em vida de Paula Rego, iniciámos o processo de aquisição de um ou dois quadros.”

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